21 Novembro 2019
"Apesar de o pré-sal, segundo a economia liberal como a que estamos prestes a adotar, representar uma oportunidade de riqueza para promover o desenvolvimento e a melhoria da vida dos brasileiros, há que se questionar, realmente, se é isso que se quer. Explorar o pré-sal é retroceder em questões e discussões que levaram décadas para serem acertadas, como as alternativas de energia limpa que substituem o petróleo e cumprem o papel de controle do aquecimento global e da intensificação das mudanças climáticas", escreve Telma Monteiro, ativista socioambiental, pesquisadora e educadora.
A tabela 8 apresenta os resultados da simulação, para extrair durante 40 anos o petróleo em cenários de recursos hipotéticos de 100, 200 ou 300 bilhões de barris, respectivamente. Esta simulação simplificada, da Tabela 4, tem o objetivo de ressaltar a dimensão e significado dos recursos do pré-sal para o País. Os montantes globais podem variar de 5 a 30 trilhões de dólares e os anuais de 125 a 375 bilhões de dólares. "Nota Técnica” (grifo meu)
Desde a descoberta do Brasil temos lidado com a expropriação das nossas riquezas naturais. Isso não é nenhuma novidade. Para quem já foi a Portugal, por exemplo, e visitou os ícones da cultura portuguesa como a Biblioteca de Coimbra, pode observar as estantes e mobiliário maravilhosos feitos com madeira nobre, maioria em jacarandá, extraída das nossas florestas. Ou, ainda em Portugal, muito do ouro e pedras preciosas que cobrem obras de arte em igrejas e castelos. Muitas cidades em outros países da Europa também ostentam obras de arte, conjuntos arquitetônicos construídos com nossas riquezas roubadas, que a maioria dos brasileiros nem sequer tem conhecimento.
Até hoje, nossas riquezas, como o minério de ferro pelotizado extraído de Minas Gerais e da Amazônia, são matéria prima para fabricar aço nas grandes indústrias pelo mundo. São as commodities, sejam elas agrícolas, minerais, madeiras nobres, minério de ferro, ou petróleo, é que destroem os biomas brasileiros. Nada disso é processado pela nossa indústria e não agrega um único centavo de dólar ou real. Os produtos industrializados no exterior voltam para o Brasil depois de enriquecer as grandes empresas internacionais e criar empregos em seus países. São 519 anos de exploração. Até agora.
Continuaremos a exportar commodities como o petróleo do pré-sal, uma riqueza que agora se sabe nos coloca no mesmo patamar dos principais produtores do planeta, como a Arábia Saudita. Sei que você está surpreso ao ler isso, mas vou demonstrar, citando partes da análise feita (outubro de 2019) e assinada pelos professores Ildo Sauer [1] e Guilherme de Oliveira Estrella [2] da Universidade de São Paulo (USP). [3]
Este artigo, assinado por mim, foi embasado nas informações que constam da Nota Técnica [4] elaborada pelos professores citados do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP). A Nota Técnica avaliou o leilão dos excedentes dos campos da cessão onerosa do pré-sal realizado em dois turnos, nos dias 6 e 7 de novembro de 2019, pelo governo brasileiro.
Antes é preciso explicar da forma mais simples possível o que são excedentes dos campos da cessão onerosa do pré-sal. Quando o pré-sal foi confirmado na costa brasileira, a União [5] – que é dona de todo o petróleo descoberto em águas do mar territorial brasileiro - teve que criar um projeto de lei, PL n. 5.941/2009, (virou a Lei Ordinária nº 12.276/2010), para regulamentar o sistema de cessão onerosa, ou seja, conceder à Petrobras o direito de explorar cinco bilhões de barris de petróleo (cálculo na época) que chamaram de “petróleo equivalente”, aí incluídos óleo e gás natural [6].
Só depois, em novas pesquisas, se descobriu que a área a ser explorada no pré-sal, possuía muito mais que os cinco bilhões de barris de petróleo, até então considerados na descoberta inicial. Segundo a Nota Técnica dos professores da USP, esses excedentes podem chegar a quantidades incríveis. Já se estima em mais de 100 bilhões de barris. Para se ter uma ideia do que significa esse montante, todo o petróleo que é retirado do pós-sal (extração acima da camada do pré-sal, mais próxima da superfície) está numa reserva de 13 bilhões de barris.
Pois bem, a Lei Ordinária (LO) só regulamentou a exploração pela Petrobras daqueles 5 bilhões de barris da tal cessão onerosa. Então, para explorar os excedentes, ou seja, as outras áreas pesquisadas depois, além daquela destinada à cessão onerosa e que descobriu-se ser um enorme potencial, teriam que ser exploradas de outra forma. O governo, então, resolveu adotar um sistema de partilha ou concessão, na forma de licitação, para outras empresas nacionais ou estrangeiras. Abrindo mão da soberania sobre essa imensa riqueza que pode chegar às cifras de 1,2 a 1,6 trilhão de reais. Então, o governo brasileiro decidiu realizar o leilão em duas etapas, nos dias de 6 e 7 de novembro de 2019, transferindo os excedentes para empresas privadas.
Esclarecido isso, podemos entrar na seara que interessa ao povo brasileiro: o leilão dos excedentes da cessão onerosa. Na verdade, sem ter a dimensão exata do quantitativo de barris de petróleo a ser explorado pelas empresas que ganhassem o leilão.
Conforme a nota dos professores Ildo Sauer e equipe, esse leilão teria como carimbo um ataque à soberania nacional, pois o Brasil estaria leiloando no escuro reservas para serem exploradas pelos ganhadores num período de mais de três décadas, segundo o edital, sem saber exatamente a extensão da riqueza envolvida.
A União não poderia exercer nenhum controle sobre “a redução ou aumento do volume de produção de petróleo, segundo as necessidades de acordos geopolíticos visando a manutenção dos preços do petróleo no mercado internacional, em patamar compatível com a maximização dos benefícios para a Nação”. [7]
Traduzindo, o controle do volume de petróleo a ser extraído ou não, e o controle dos preços internacionais ficariam nas mãos das grandes empresas do cartel da OPEP+ que poderia manipular o mercado mundial conforme as conveniências dos países membros. Ter o controle de reservas de petróleo de tamanha dimensão poderia ser o objetivo. E assim foi, e a Nota Técnica explica como.
Há que se mencionar também, a falta de visão de governos passados de fazer uma real pesquisa da verdadeira dimensão dos excedentes do pré-sal. E criar uma regulamentação para preservar o Brasil da possibilidade que agora se apresenta: nas mãos desse governo de extrema direita, com um viés amplamente autoritário e um projeto econômico liberal. Onde tudo é privatizado.
Para que a exploração desses excedentes tenha como base o interesse público, uma vez que foi a Petrobras que investiu na tecnologia para descoberta desse petróleo, ela deve ter a prioridade do contrato para sua exploração, na forma de prestação de serviços. Fica evidente que de acordo com os termos do edital do leilão, não havia como a União manter um controle efetivo sobre o “ritmo de produção do petróleo”. Esse controle é essencial para futuros acordos de exportação e de regulamentação para promover os interesses do Brasil diante da OPEP+ (14 países membros da OPEP mais Rússia, México e Cazaquistão).
Todo os excedentes de extração sem o controle da União torna injusta a distribuição da riqueza oriunda dos recursos que pertencem, por direito, às futuras gerações. Se o leilão tivesse êxito, governos futuros não poderiam alterar essa forma de exploração dos excedentes da cessão onerosa do pré-sal.
“A dívida social com a população brasileira, titular segundo a constituição dos recursos do petróleo, em termos de investimentos em saúde e educação públicas, em infraestrutura urbana e produtiva, em proteção ambiental, em ciência e tecnologia e na transição energética para fontes renováveis, somente será resgatada se estes recursos forem desenvolvidos de forma a maximizar o retorno para o interesse público.” [8]
Se o leilão tivesse sido um sucesso, o Brasil, mesmo assim, estaria vulnerável às pressões da organização dos países exportadores de petróleo, a OPEP+ (Argélia, Angola, Equador, Irã, Iraque, Kuwait, Líbia, Nigéria, Catar, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Venezuela e o + Rússia, México e Cazaquistão). Ao vender sua soberania, deixaria de exercer o direito ao enfrentamento numa possível guerra de preços.
O fracasso do leilão, com a OPEP+ fora, com exceção do Catar, bem como a ausência de 11 das 14 interessadas (menos duas empresas chinesas e a Petrobras) deixou os excedentes da cessão onerosa lá no fundo do pré-sal, ainda pertencentes à União. Mas, isso não quer dizer que não possa haver um novo edital, reformulado, que torne atrativa a exploração dessa riqueza de todos os brasileiros.
É importante, também, especular os motivos que podem explicar o fracasso do megaleilão. Listei abaixo algumas considerações:
1. Analistas internacionais já sinalizaram que o preço do petróleo deve despencar de $62 o barril para $45 o barril [9]. Isso pode mostrar a preocupação da OPEP+ com um possível êxito do leilão brasileiro. Inundar o mercado mundial com petróleo extraído de países fora do cartel agravaria o cenário já previsto e aceleraria a queda dos preços no mercado internacional. Esse pode ser um dos principais motivos que levou ao fracasso do leilão do pré-sal brasileiro.
É preciso lembrar que à OPEP+ interessa manter o preço do petróleo elevado e controlar a produção para beneficiar seus países. Aos países importadores, por outro lado, interessa a queda dos preços com o aumento da oferta. O Brasil do pré-sal estaria entre dois fogos e poderia ser um elemento desestabilizador. Ainda mais se considerarmos que a descoberta da província geológica do pré-sal foi o fato mais importante da indústria do petróleo, na atualidade, segundo a Nota Técnica.
2. Outro dado importante que também pode explicar esse fracasso é a estratégia da OPEP+ que, em não havendo compradores de porte para a exploração do pré-sal brasileiro, todo esse petróleo permaneceria intacto, pelo menos por enquanto, salvo fato extraordinário que exigisse lançar mão dele no futuro. O petróleo do pré-sal brasileiro não representa, estando lá embaixo, um risco de superoferta no mercado.
3. Mais um ponto pode nos ajudar a entender esse jogo de xadrez internacional. Há, claramente, uma desconfiança brutal com relação ao atual governo brasileiro, à estabilidade econômica e política, e aos recentes problemas de vazamento de óleo, ainda não explicados na costa do Nordeste. Sanções ambientais de fóruns internacionais têm se mostrado um empecilho para grandes empresas poluidoras como as petrolíferas.
4. Os vencedores do leilão teriam que pagar um alto “pedágio” antecipado para o governo brasileiro. Lógico que seria infinitamente menor, caso a União mantivesse sua soberania na exploração desse petróleo. As candidatas eram 14 empresas de 11 países, a saber: 1 – BP Energy do Brasil Ltda. (Inglaterra); 2 – Chevron Brasil Óleo e Gás Ltda. (EUA); 3 – CNODC Brasil Petróleo e Gás Ltda. (China); 4 – CNOOC Petroleum Brasil Ltda. (China); 5 – Ecopetrol Óleo e Gás do Brasil Ltda. (Colômbia); 6 – Equinor Brasil Energia Ltda. (Noruega); 7 – ExxonMobil Exploração Brasil Ltda. (EUA); 8 – Petrogal Brasil S.A. (Portugal); 9 – Petrobras (Brasil); 10 – Petronas Petróleo Brasil Ltda. (Malásia); 11 – QPI Brasil Petróleo Ltda. (Catar); 12 – Shell Brasil Petróleo Ltda. (Inglaterra); 13 – Total E&P do Brasil Ltda. (França); 14 – Wintershall DEA do Brasil Exploração e Produção Ltda. (Alemanha).
5. A explicação para a não participação dessas petrolíferas, à exceção das duas chinesas e da Petrobras, pode ser uma incógnita. Mas, convenhamos que investir um adiantamento de bilhões de dólares para o governo brasileiro, mais o custo da extração, pode ter pesado na decisão; considere-se ainda todas as colocações anteriores, principalmente o anúncio da esperada queda do preço do barril de petróleo com o aumento da oferta. O povo brasileiro e o planeta agradecem.
Esse fracasso histórico do leilão do pré-sal brasileiro pode ter salvado o Brasil de entregar, mais uma vez, suas riquezas aos interesses internacionais e evitado que mais energia suja contribua para o aquecimento global.
Apesar de o pré-sal, segundo a economia liberal como a que estamos prestes a adotar, representar uma oportunidade de riqueza para promover o desenvolvimento e a melhoria da vida dos brasileiros, há que se questionar, realmente, se é isso que se quer. Explorar o pré-sal é retroceder em questões e discussões que levaram décadas para serem acertadas, como as alternativas de energia limpa que substituem o petróleo e cumprem o papel de controle do aquecimento global e da intensificação das mudanças climáticas.
Estamos no momento numa verdadeira guerra mundial para redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera, para cumprir o Acordo de Paris [10]. O mundo clama por uma revisão dos hábitos de consumo e da diminuição dos usos dos combustíveis fósseis e sua substituição por energias limpas, e adoção de infraestrutura voltada para o transporte de massa. As mudanças no clima já estão criando milhões de refugiados climáticos no mundo e nos deparamos, agora, com um paradigma que colocaria o Brasil, com a exploração do pré-sal segundo a visão liberal, na iminência de transformar uma sociedade miserável em uma sociedade rica, revertendo as mazelas que a população enfrenta. Mas, a que custo? Ou como ter certeza que um governo de extrema direita saberia administrar tanta riqueza? Ou se consideraria a capacidade de suporte do planeta? Ou se relegasse ao esquecimento a adoção de energias limpas? Que segurança teria a sociedade?
O outro lado da questão é saber o que realmente queremos: manter a soberania do Brasil de dispor da riqueza imensurável que se nos apresenta ou abrir mão dela sem pensar que as próximas gerações poderão sentir que foram prejudicadas, usurpadas do seu direito de desfrutar daquilo que a riqueza de um país pode proporcionar. Teríamos esse direito? Essa é a visão da economia liberal proposta pelo governo atual. Ou elas, as futuras gerações, estariam gratas por termos tomado a decisão de preservar o planeta, tornar o ar respirável, optar pelo consumo consciente, promovendo a estabilidade do clima, relegando para segundo plano as riquezas e as conquistas consumistas que levariam o planeta à degradação. O desafio maior de superar os erros do passado para salvar o planeta da extinção. Essa seria a forma de ganhar a guerra pela preservação da raça humana, vamos dizer, mais humanizada.
Priorizar a economia baseada na exploração e uso do petróleo e seus derivados, ainda mais nessa escala, seria como retroceder ao século XIX. Deixaríamos de levar em conta todas as etapas de desenvolvimento calcado em tecnologias de energia limpa alcançadas ao longo das últimas décadas, para onde estão indo os países mais avançados do mundo.
A nota técnica dos professores da USP, no entanto, faz uma apologia da importância do desenvolvimento e enriquecimento do Brasil alavancados pela exploração do pré-sal brasileiro, mas pela Petrobras, para não perder a soberania. Apesar de se tratar de uma importante descoberta, no entanto, há que se ponderar sobre a realidade dos riscos implicados para o meio ambiente e a saúde do mar que banha a costa brasileira e sua biodiversidade. Haja vista, que até hoje não se tem respostas plausíveis para as manchas de óleo que estão poluindo o litoral do Nordeste desde o final de julho deste ano. Se explorarmos o pré-sal quais seriam as chances de termos mais desastres desse tipo?
Para os professores seria a grande oportunidade para a sociedade brasileira se desenvolver e atingir um outro patamar, o da igualdade, com a erradicação da miséria, disponibilização de saneamento básico, saúde e educação. Resgatar a autoestima de um povo que sofre as agruras que o condena ao anonimato na sua desimportância.
O texto da Nota Técnica coloca para discussão os benefícios dessa oportunidade histórica única, a riqueza contida na exploração do pré-sal, que pertence ao povo brasileiro. Assim sendo, é preciso impedir que isso beneficie empresas estrangeiras e seus países desenvolvidos que precisam comprar créditos de carbono e “esverdear” suas emissões de gases de efeito estufa. Seríamos mais uma vez usurpados e explorados.
O governo liberal “passa ao largo” dessas questões, desconsiderando a sociedade como um todo e esquecendo que o pré-sal é do povo brasileiro.
[1] ILDO LUÍS SAUER: Professor Titular de Energia do Instituto de Energia e Ambiente da USP, Ex-diretor de Gás e Energia da Petrobras (2003-2007), responsável pela formulação da reorientação estratégica da Petrobras, para dar ênfase à exploração e produção, promover inserção do gás natural na matriz energética como início da transição energética e investir no desenvolvimento de fontes renováveis de energia.
[2] GUILHERME DE OLIVEIRA ESTRELLA: Geólogo, ex-superintendente do CENPES, Ex-diretor de Exploração e Produção da Petrobras (2003-2011), responsável pela condução dos trabalhos que culminaram com a descoberta dos recursos do pré-sal em 2006.
[3] Fica registrado o agradecimento ao Dr. Alcântaro Lemes Rodrigues e à Dra. Larissa Araújo Rodrigues, pela contribuição na elaboração deste trabalho.
[4] Baixe a Nota Técnica no link.
[5] União é o país, Brasil, e não os governos eleitos.
[6] Acesse aqui.
[7] Extraído da Nota Técnica
[8] Extraído da Nota Técnica
[9] Acesse aqui.
[10] Na 21ª Conferência das Partes (COP21) da UNFCCC, em Paris, foi adotado um novo acordo com o objetivo central de fortalecer a resposta global à ameaça da mudança do clima e de reforçar a capacidade dos países para lidar com os impactos decorrentes dessas mudanças.
O Acordo de Paris foi aprovado pelos 195 países Parte da UNFCCC para reduzir emissões de gases de efeito estufa (GEE) no contexto do desenvolvimento sustentável. O compromisso ocorre no sentido de manter o aumento da temperatura média global em bem menos de 2°C acima dos níveis pré-industriais e de envidar esforços para limitar o aumento da temperatura a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais.
O Brasil se comprometeu a aumentar a participação de bioenergia sustentável na sua matriz energética para aproximadamente 18% até 2030, restaurar e reflorestar 12 milhões de hectares de florestas, bem como alcançar uma participação estimada de 45% de energias renováveis na composição da matriz energética em 2030.
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Petróleo brasileiro do pré-sal: mais uma riqueza a ser expropriada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU